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Reflexões, Roteiro

Billy Wilder e a arte de esconder pistolas

(Texto originalmente publicado na Revista Janela)

Escrever um bom roteiro é tarefa dificílima. Creio todavia, sem risco de egocentrismo, poder dizer que, para mim, esse processo é ainda mais laborioso que para a maioria das pessoas. Isso se deve ao fato de que meu superego é Billy Wilder.

Não é mentira. Há um pequeno judeu alemão de charuto na boca que anda sobre meu ombro, reiterando o tempo todo o quanto tudo o que escrevo é ridículo, tacanho e precário, e me lembrando sem cessar da minha incontornável indisciplina e indisfarçável preguiça.

Billy Wilder se tornou meu superego desde a primeira vez em que assisti a “Se Meu Apartamento Falasse” e desenvolvi uma peculiar obsessão por dois objetos específicos que desempenham um papel dramatúrgico importante no filme: uma pistola e uma garrafa de champanhe.

Para quem não viu ou não se recorda com precisão do filme, C. C. Baxter, interpretado por Jack Lemmon, é um tipo comum e boa praça que, solteiro, destaca-se na empresa por emprestar seu apartamento para as aventuras amorosas de outros colegas de trabalho. Sheldrake, um dos diretores da empresa, se interessa pela possibilidade de uso da garçoniére e convence Baxter com a promessa de ascensão na carreira. Para desconsolo do protagonista, entretanto, logo se revela que a amante de Sheldrake é justamente a srta. Kubelik (Shirley Maclaine), uma das ascensoristas da firma, por quem Baxter tem uma queda.

É noite de Natal e, desconsolada por ver Sheldrake descumprir mais uma vez a promessa de se divorciar, Kubelik, na tentativa de se matar, toma um vidro de comprimidos para dormir que encontra no armário do banheiro de Baxter.

O protagonista chega a tempo de salvá-la, e os dois passam longas horas juntos no apartamento enquanto ela se recupera sob seus cuidados – período em que Baxter evidentemente se apaixonada ainda mais pela mocinha.

O champanhe. Kubelik ainda está se recuperando e cochila. A campainha toca. É Kirkeby, um dos colegas de escritório do personagem de Jack Lemmon, na esperança de usar o apartamento para uma pequena farra de Natal. Baxter despacha-o, mas o sujeito esquece a garrafa de champanhe que trouxera.

A pistola. Pouco depois, na tentativa de oferecer consolo a Kubelik, Baxter diz a ela que sabe como se sente, pois certa vez se apaixonara loucamente por uma mulher e chegara a tentar se matar. Ele relata que comprara uma pistola, mas que acidentalmente disparara contra o próprio joelho.

Mais adiante, desconsolado porque Sheldrake de fato acaba se divorciando, Baxter pede demissão e resolve mudar-se de Nova Iorque. Ele arruma suas coisas, e nós o vemos abrir uma gaveta, retirar uma pistola, pegá-la de forma desajeitada e guardá-la em uma caixa.

No desenlace do filme, diante da notícia de que Baxter pedira demissão e se recusara a emprestar novamente o apartamento para Sheldrake, Kubelik se dá conta de que quase deixara escapar o homem de sua vida, abandona Sheldrake na noite de ano novo e corre até o apartamento de Baxter.

Enquanto sobe as escadas, ela ouve um tiro – ou um estampido que parece ser de um tiro. Desesperada, Kubelik corre escada acima e esmurra a porta, que é aberta então por um incrédulo Baxter com a garrafa de champanhe recém-aberta na mão.

Mas o que há de tão espantoso nessa sequência de situações que culmina na cena final a ponto de que Billy Wilder passasse a morar sobre meu ombro?

Na verdade, champanhe e pistola são dois dos elementos fundamentais na construção de um desenlace surpreendente e criativo. A maneira pela qual esses dois objetos – pistola e garrafa de champanhe – são plantados no roteiro é exemplo de uma dupla de roteiristas no auge de sua capacidade criativa e de domínio de seu ofício.

Não é tarefa simples inserir sobretudo uma pistola em uma trama sem que o espectador crie grandes expectativas a seu respeito. Acho que foi Chekhov quem disse que, se um rifle aparece no primeiro ato, ele deverá disparar antes do fim da peça.

O champanhe é menos dramaturgicamente complicado nesse sentido, mas ainda assim plantá-lo de forma pouco cuidadosa poderia por a perder todo o filme.

David Bordwell importa dos formalistas russos os conceitos de fábula e syuzhet para explicar a narrativa fílmica. A fábula é a história propriamente dita, construída na mente do espectador por meio dos elementos imagéticos e sonoros fornecidos pelo syuzhet, que é a superfície do filme, uma série de “pistas” e elementos que permitem ao espectador gradualmente reconstruir a fábula, por meio de inferências e deduções. A fábula em geral é maior que os elementos que o syuzhet apresenta, e só existe na mente de quem vê o filme.

Ora, um dos princípios da narrativa clássica é o de jamais chamar a atenção, nesse sentido, para o syuzhet, distraindo o espectador de sua tarefa de construção da fábula. No momento em que deixamos de construir hipóteses sobre a história e paramos para observar as costuras da narrativa, há algo errado.

Isso ocorre, entre outro motivos, quando uma cena ou situação não se encaixa nos critérios de verossimilhança aplicáveis ao gênero ou estabelecidos pela própria trama até então.

Assim, se a chegada de Kirkeby não estivesse bem justificada em termos de verossimilhança pelas probabilidades estabelecidas pelo próprio roteiro até ali, e dentro dos limites do gênero da comédia romântica, imediatamente detectaríamos a presença da mão do roteirista plantando algo para obter um efeito específico mais adiante.

Não obstante, a presença de Kirkeby faz bastante sentido. Ele é desde o início um dos que fazia parte do “clube” de colegas que usava o apartamento. Entendemos que, com a “entrada” de Sheldrake na jogada, Baxter passara a recusar acesso aos demais à garçoniére. Vimos, além disso, em cena anterior, a amante de Kirkeby reclamar que ele a levara a um drive in, e o próprio Kirkeby se queixando aos colegas que tivera que “fazê-lo” em seu Fusca .

É Natal agora, e nada mais natural portanto que vermos um fusca estacionando diante do apartamento, e Kirkeby retirando um balde gelo e uma garrafa de champanhe do porta-malas.

Mas e a pistola? Como introduzir uma revólver de maneira quase imperceptível em um roteiro? E, além disso, chegar ao fim do filme sem dispará-lo?

É possível garimpar alguns dos artifícios usados por Wilder e seu inseparável parceiro I. A. L. Diamond para aprendermos algo sobre a escrita de roteiros.

Primeiro, a pistola é introduzida em diálogo, possibilitando que à sua aparição física posterior seja dado um tom de desimportância.

Baxter, conforme já explicado, conta a história de sua tentativa frustrada de suicídio. Cenas adiante, quando o vemos encaixotando a arma, o gesto adquire uma conotação de comentário jocoso à cena do relato que víramos antes, sobretudo porque sua tentativa de se matar tivera um desdobramento cômico. Ele fora a um parque, não sabia em que parte do corpo atirar, e então vira um policial se aproximando. Na tentativa de esconder o revólver embaixo do banco do carro, Baxter atirara no próprio joelho e passara muitos meses mancando.

O desdobramento cômico do suicídio, por sua vez, é plenamente justificado pelo lado cômico do personagem de Jack Lemmon, sempre meio atrapalhado. A forma canhestra como ele pega a pistola na única cena em que ela de fato aparece reverbera essa característica e nos faz não formular nesse momento nenhum tipo de hipótese a respeito do uso da pistola. Afinal, ela já disparara anos antes. Sua aparição é tomada por isso como mero comentário, e não como motivo em potencial de desdobramentos futuros na trama.

Para que o efeito de surpresa funcione na cena final, entretanto, há mais um elemento importante: a recorrência do tema do suicídio ao longo da segunda metade do filme. Não à toa, David Bordwell e Kristin Thompson ressaltam a reiteração e repetição de temas como uma das pedras angulares da narrativa clássica.

Primeiro, Kubelik tenta se matar. Depois, Baxter relata sua própria tentativa. Pouco mais tarde, ele a deixa sozinha no apartamento e sai para fazer compras. Sucede-se então uma cena que será um espelho da cena final.

Ao voltar, Baxter é recebido pela proprietária do imóvel – que mora no térreo – preocupada com o cheiro de gás que vem de seu apartamento. Assustado, ele corre escada acima – da mesma forma que Kubelik fará na cena final – e abre a porta – evidentemente pensando que ela novamente tentara se matar.

Alarme falso, Kubelik ligara o gás para ferver água, mas se esquecera de acender o fogo. Por três vezes, portanto, temos a reiteração do tema do suicídio.

Estão estabelecidas assim as condições para que, quando Kubelik sobe as escadas e ouve o estampido, formulemos, junto com ela – já que nesse momento o filme restringe o que sabemos ao ponto de vista dela – a hipótese de que Baxter teria se matado usando a pistola.

Para nossa alegria e dela, entretanto, Baxter abre a porta com o champanhe borbulhando nas mãos e estabelece o palco para que os dois finalmente fiquem juntos.

Ora, não é tarefa simples o que logram Wilder e Diamond: fazer passar despercebida, mas nem tanto, uma pistola.

O objeto precisa ganhar a saliência exata, num contexto cuidadosamente calibrado, para bloquear a formulação da hipótese de que ela será usada, mas ao mesmo tempo, sugerir imediatamente a hipótese de seu uso quando ouvirmos o estampido e virmos a reação de Kubelik ao subir as escadas do apartamento.

O próprio fato de que, para entender como é possível que os roteiristas tenham logrado esse efeito, tenhamos que reconstruir boa parte do filme e as ligações entre seus vários elementos, dá conta da complexa, sutil e apurada arquitetura de “Se meu Apartamento Falasse”.

Não espanta, portanto, que Billy Wilder seja meu superego. Agora mesmo, enquanto escrevo esse texto para a ]Janela[ sinto sobre ombro o peso desse homenzinho. Fumando seu cigarro, ele censura a forma do texto e o acha confuso e mal resolvido.

Sobre Pedro Novaes

Diretor e Produtor de Cinema e Vídeo. Sócio da Sertão Filmes, produtora com base em Goiânia, Brasil.

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