(Texto originalmente publicado na Revista ]Janela[).
Já se tornou quase lugar comum, ao menos entre uma fatia dos cinéfilos e dos realizadores audiovisuais, dizer que o cinema brasileiro padece de um problema de roteiros ou mesmo que o maior problema de nossos filmes residiria na falta de atenção ao desenvolvimento dos roteiros. Isso explicaria, em grande medida, a dificuldade de nossos filmes para caírem no gosto do público e conquistarem uma fatia maior da audiência.
Trata-se de uma simplificação exagerada. Os problemas do cinema brasileiro são evidentemente vários e provêm de uma multiplicidade de causas. Há problemas culturais, na formação do público, onde ainda prevalece grande preconceito contra o filme brasileiro, e na dos realizadores, que se preocupam pouco com o público. Há o problema da distribuição, que ocorre num sistema estrangulado e cruel, cujo funil deixa passar essencialmente os filmes com polpudos orçamentos de marketing.
Mas há sim problemas relacionados ao roteiro e à nossa visão do processo criativo no cinema. Sem pretender uma análise exaustiva, gostaria de apontar para duas questões que merecem reflexão por quem acredita que o roteiro seja uma peça fundamental da criação no cinema: nossa abordagem em larga medida destorcida do processo de escrita de roteiros e a prevalência de uma oposição estéril entre cinema clássico e moderno.
Muita gente parece encarar o desenvolvimento de um roteiro como um processo meramente artístico e autoral, onde, guiado unicamente por sua inspiração e gênio criativo, o roteirista dá à luz uma obra.
Ora, as redes sociais estão inundadas por citações de grandes escritores, falando do penoso processo de criação literária, da necessidade de disciplina e do predomínio da transpiração sobre a inspiração.
Tais advertências parecem ainda mais válidas para o roteiro de cinema porque ele não se encerra em si mesmo. Como diz Antonio Prata, “um roteiro não é uma obra de arte: é um manual de instruções para uma obra de arte. É relojoaria. Engenharia. Requer conhecimento de engrenagens, cabos e roldanas, balística.” Para dar suporte a sua afirmação, ele lembra ainda que F. Scott Fitzgerald escreveu roteiros, durante certo tempo, para Hollywood, mas que não obteve êxito. Comentando esse fracasso, Billy Wilder teria dito que o problema fora “contratarem um escultor para trabalhar com encanamento”.
Exageros a parte, há nessas afirmações uma benvinda sobriedade em relação ao lugar do roteiro. Discordo daqueles, como Guillermo Arriaga, que acham que o roteiro é uma obra literária, que pode e deve ser lido independentemente do filme a que deu origem – “como o teatro”, reforçarão alguns.
O teatro que pode ser lido, como o de Shakespeare, é, não obstante, uma arte da palavra, muito mais próxima da literatura, por isso, do que o cinema, cuja linguagem é a das imagens com seu alto poder simbólico e sensível. Um roteiro pode até ser publicado e lido, mas, a meu ver, como mera peça de estudo. Ele nunca terá o mesmo peso, em suas palavras, que um livro ou uma peça teatral porque nele as palavras são somente um veículo para dizer como uma história deve ser contada pela via das imagens.
Valorizamos equivocadamente, nesse sentido, uma certa imagem do roteirista (e por extensão do realizador audiovisual), como um gênio iluminado, de talento quase mediúnico, que psicografa novas e impactantes obras audiovisuais. E essa visão torta elide os componentes principais do processo de escrita criativa, que são a técnica e a disciplina, levando-nos também a colocar o roteiro numa posição errada dentro do fluxo de produção dos filmes.
Nessa direção, Antonio Prata completa: “Muito de um roteiro é, sim, encanamento: saber que tubos conectar, em que ângulos, para que a água entre aqui e saia lá, com a temperatura e pressão certas, sem vazar. Isso explica por que são tão poucos os bons roteiristas brasileiros: nesta terra de bacharéis, ninguém quer ser encanador, todos queremos ser escultores. Queremos ouro sem garimpo, brilho sem polimento.”
Uma vez clareado o lugar do roteiro e melhor compreendida a natureza do processo criativo, uma advertência do guru hollywoodiano Robert Mckee ganha mais sentido. Para ele, a disciplina é a principal arma na grande batalha contra o maior inimigo de qualquer roteirista: os clichês.
Toda situação dramática já foi contada e recontada infinitas vezes ao longo da história da humanidade. Por isso, diz ele, qualquer cena precisa ser reescrita dez, 15, 20 vezes. Nossas dez primeiras ideias quase certamente serão clichês. Imaginemos qualquer situação comum em um filme – por exemplo, a cena onde um par romântico se conhece.
Como inventar algo original se essa situação já foi retratada milhares de vezes? No metrô, num ônibus, festa, um esbarrão na rua, um comentário casual sobre um quadro num museu, uma situação inicial de antipatia mútua, um gesto dela que chama a atenção dele, uma paixão secreta pela mulher de um amigo, um amor impossível por se tratarem de famílias inimigas ou classes sociais diferentes? Tudo já foi contado e, no entanto, a missão do roteirista continua sendo a de dar frescor e originalidade às mesmas situações de sempre.
Isso demanda, cabe repetir uma vez mais, disciplina, e há muitas técnicas que nos ajudam a não nos perdermos no caminho e a não nos desesperarmos no meio da escuridão, quando a única vontade é a de esmagar o teclado do computador ou chorar.
É preciso questionar tudo o tempo todo, nos ensina Arriaga. Para isso, facilita não ceder de cara à tentação de desenvolver as cenas. É recomendável trabalhar com fichas e com escaleta (embora Arriaga não faça isso), antes de partir para o roteiro propriamente dito. Convém também não permitir que outras pessoas leiam o roteiro prematuramente porque eventuais elogios tendem a nos deixar apegados a determinadas cenas ou aspectos da narrativa, e o apego vaidoso ao produto de seu trabalho é o segundo maior inimigo do roteirista – depois dos clichês.
Com isso, podemos abordar o segundo problema elencado, isto é, o das distorções provocadas por uma oposição pouco razoável entre cinema moderno e cinema clássico.
O roteiro evidentemente é peça tão fundamental do processo criativo num filme moderno, quanto numa narrativa clássica, embora sua forma e seu lugar certamente mudem.
Há supostamente grandes filmes feitos sem roteiro, em processos abertos e/ou coletivos. Todavia, além de representarem exceções, esses filmes certamente partiram de uma ideia, várias delas ou de um argumento mais ou menos detalhado. Mais que isso, entretanto, um roteiro não se opõe necessariamente a um processo aberto a contingências e a contribuições posteriores, incluindo improvisações de atores, por exemplo, ou procedimentos inovadores. Ao contrário, penso que quanto mais o realizador se planeja e conhece o mundo de sua história ou seu tema, mais seguro se sentirá para renovar.
“Blue Valentine”, de Derek Cianfrance (cujo famigerado título em português, “Namorados para Sempre”, me recuso a utilizar), é um ótimo exemplo nesse sentido. Não obstante tratar-se evidentemente de uma narrativa clássica, é um filme largamente construído sobre contribuições dos atores Ryan Gosling e Michelle Williams, com diálogos quase completamente improvisados. Além disso, como valoriza o frescor das primeiras tomadas, Derek trabalhou sempre com duas câmeras porque não gosta de gravar diálogos em planos separados. Apesar disso, ou justamente por isso, o roteiro de “Blue Valentine” passou por mais de cem tratamentos, antes que o filme começasse a ser rodado.
Parece-me que alguns realizadores, sobretudo aqueles que se identificam com um cinema de inovação de linguagem, tendem a menosprezar os roteiros ou a importância de um processo mais dilatado em seu desenvolvimento, como se tais inovações fossem produto somente de um trabalho criativo no set de filmagem. Eu diria que quem pretende inovar, nesse sentido, precisa trabalhar duas vezes mais do que quem se propõe a narrativas de corte clássico – por razões que devem ser óbvias.
Mais que isso, o maniqueísmo pobre na oposição entre cinema clássico e moderno que pauta certas atitudes parece levar muita gente a jogar fora o bebê com a água do banho, desprezando a importância dos formatos e técnicas do cinema clássico.
Ora, a inovação não se faz no vazio. As formas inovadoras, não apenas no cinema, mas em qualquer arte, sempre surgiram em oposição a um determinado formato que representava o status quo. No caso do cinema, essa forma é a da narrativa clássica. Não há como inovar no vazio. Todos os grandes mestres que revolucionaram a linguagem do cinema eram profundos conhecedores da estrutura clássica.
Além disso, o fato de que, no Brasil, tenhamos contado com um cinema novo muito forte e que ganhou o reconhecimento do mundo parece nos inibir a fazer um cinema clássico sem culpas, como se somente um cinema de inovação de linguagem pudesse ser legítimo. Nossos vizinhos argentinos parecem ter bem menos dificuldades que nós em abraçar narrativas clássicas, quem sabe justamente porque sua cinematografia não tenha passado por um movimento renovador tão forte quanto o nosso cinema novo.
Como roteiristas, devemos conhecer as formas e as técnicas da narrativa clássica e, se desejarmos, abraçá-las sem medo. Nosso cinema será tão melhor, na verdade, quanto maior for a sua diversidade de formatos, e não há como formar roteirista e diretores inovadores sem passar primeiro pelo cinema clássico.
O cinema americano é o cinema mais diverso do mundo. O mesmo país onde reina a indústria hollywoodiana é também o país com um dos cinemas independentes mais vicejantes. As duas coisas não se excluem.
Não podemos nos esquecer também, por outro lado, que roteiros bons surgem não apenas onde as pessoas estudam e se dedicam com afinco e disciplina à escrita, mas sobretudo onde há muitos roteiristas produzindo. Dos milhares de roteiros produzidos anualmente nos EUA ou na Europa apenas uma ínfima porção chega às telas.
Aqui, de outro lado, a realidade é que temos muito poucos roteiristas. E não se trata, neste caso, de um problema de mercado de trabalho. As produtoras estão sedentas por bons roteiros, mais ainda agora com os efeitos da Lei 12.485 já se fazendo sentir, mas a verdade é que não há muita gente efetivamente dedicada à função.
Discussão
Nenhum comentário ainda.