* Texto publicado originalmente na Revista do Cinema Brasileiro
Goiás e, mais especificamente, Goiânia são lugares intrigantes. Simbolicamente situados no centro do país, o estado e sua capital são, de certa forma, uma espécie de limbo, ou zona de transição, entre nossas tradições mais arcaicas e o que temos de moderno.
Goiânia ostenta os títulos paradoxais de capital da música sertaneja e do rock independente. Embora o grande público o desconheça, os verdadeiros fãs de rock sabem que é de Goiânia um dos principais selos de música independente do país, a Monstro Discos, e que é daqui um dos festivais de rock mais antigos e cultuados do Brasil, o Goiânia Noise Festival, que neste ano terá sua 18a edição. Gustavo Vásquez, produtor musical daqui, é o único a ter obtido, por dois anos seguidos, o primeiro lugar entre os melhores lançamentos do ano da Rolling Stone brasileira, com as bandas Macaco Bong e Black Drawing Chalks.
Para os que fazem cinema em Goiânia, 2011 foi um ano marcante. Dois filmes radicalmente diferentes conquistaram lugares em festivais de primeira linha e foram comentados como evidências de uma cena de produção cada vez mais fértil. O curta “Julie, Agosto, Setembro”, de Jarleo Barbosa, um dos sócios da jovem Panaceia Filmes, aportou, entre outros grandes festivais, em Gramado, no Cine Ceará, na Mostra de Tiradentes e no Goiânia Mostra Curtas, onde ganhou prêmios de direção e do Júri Popular. O longa “Cartas do Kuluene”, dirigido por esse que vos escreve, teve sua estreia na última Mostra Internacional de São Paulo.
Não menos importantes para a cena goiana e também despontando no cenário nacional, são nomes como os de Alyne Fratari, agora rodando seu sétimo curta em sete anos, Simone Caetano, cujo “Verde Maduro” também tem circulado com elogios nos festivais, o da documentarista Cláudia Nunes, aplaudida, entre outros, por “Rapsódia do Absurdo” e pelo impactante “Número Zero”, Lourival Belém, com seu “Recordações de um Presídio de Meninos”, e Luiz Eduardo Jorge, com “Passageiros de Segunda Classe”. No campos da animação, não podemos deixar de mencionar as várias produções da Mandra Filmes, como “Peixe Frito”, e o elogiado “O Ogro”, de Márcio Jr. (por sinal, um dos sócios da Monstro Discos) e Márcia Deretti.
Num momento especial para o cinema feito aqui, cabe homenagear os que nos antecederam. Sendo assim, embora seja suspeito para falar, preciso dizer que, na minha opinião, Goiás tem uma das pérolas esquecidas do cinema brasileiro, o longa “O Diabo Mora no Sangue”, produzido e estrelado pelo mineiro aqui radicado João Bennio, e dirigido por um jovem Cecil Thiré. Filme de estreia de Ana Maria Magalhães no cinema, ele conta a história dos conflitos vividos por um ribeirinho do Araguaia com a chegada de um liberal grupo de turistas às praias do rio. Um retrato íntimo do conflito entre modernidade e tradição, “O Diabo” não deixa de tocar em nenhum dos outros temais fundamentais: o desejo, o amor, o incesto e a morte. Eis um filme que precisa ser resgatado e alçado ao lugar que merece na galeria do cinema nacional.
A produção em Goiás evoluiu radicalmente ao longo da década de 2000, quando amadureceram mecanismos públicos de fomento, como a Lei Municipal de Incentivo à Cultura de Goiânia e a Lei Goyazes, em nível estadual, além de diferentes editais e prêmios, bem como um conjunto de festivais – o FICA, o Goiânia Mostra Curtas, o Festcine Goiânia, O Perro Loco e a Mostra Independente do Audiovisual Universitário -, que criaram janelas de exibição e ajudaram a fomentar o surgimento de um debate audiovisual e de intercâmbio entre realizadores locais e de fora. Cabe ressaltar que evidentemente esses mecanismos e mostras não criaram o audiovisual feito aqui. Ele sempre existiu antes e à margem disso, mas inegavelmente ganhou força na esteira desses eventos e leis, bem como da rápida democratização do digital ao longo da última década.
Junto com esses fatores, não se deve deixar de mencionar o surgimento e consolidação de mecanismos de capacitação, sobretudo a graduação em Audiovisual da Universidade Estadual de Goiás que, aos trancos e barrancos e a despeito de todas as suas carências, tem indubitavelmente formado jovens realizadores que emergem da faculdade com outro olhar, muito mais preparado e apurado.
Se produzir cinema no Cerrado e fora do eixo Rio-São Paulo tem seus reveses, especialmente na dificuldade de acesso a financiamentos mais expressivos e na carência de mão-de-obra técnica em certas áreas, de outro, esses mesmo obstáculos, ao longo dos anos, têm ensinado os realizadores a produzirem com cada vez mais qualidade, a despeito da carência de recursos. Se a maior proximidade entre as pessoas, de um lado, como em toda parte, exacerba as vaidades e os egos, de outro, facilita a troca e a colaboração.
E, mais que tudo, nossos paradoxos existenciais – de metrópole periférica, de província conectada, de embate entre modernidade e tradição, de cidade do rock e do sertanejo – propiciam um raro caldo cultural de enorme fertilidade e potencial criativo. Parece-me que é essa esquizofrenia que, devagar, começa a respingar sobre as telas de nossos filmes. Quanto mais formos capazes de dar expressão a ela, creio que mais força terá nosso cinema.
Sob evidente suspeita, acredito muito em Goiás como um pólo audiovisual que chamará a atenção do país nos próximos anos, assim como Porto Alegre e Recife, entre outras cidades fora do eixo Rio-São Paulo, já o fizeram no passado.
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