Em outubro do ano passado, fui convidado a integrar, em Buenos Aires, o júri da décima edição do Cinecien – Festival de Cinema e Vídeo Científico do Mercosul, organizado, em 2011, pelo Ministério da Ciência e Tecnologia argentino.
Além da ótima oportunidade de ver um conjunto amplo de documentários e filmes didáticos de vários países e debater com colegas de outras quatro nações vizinhas para definir os vencedores,foi-me solicitado que fizesse uma breve fala, abordando, da minha perspectiva, a relação entre cinema e ciência.
O texto abaixo é uma adaptação do que expus na Biblioteca Nacional argentina naquele dia. Foi uma possibilidade de rever algumas ideias e autores importantes para mim à época do mestrado e uni-los com o tema da palestra, com minha experiência na área ambiental e especificamente com a participação no Festival de Cinema e Vídeo Ambiental, o FICA, há vários anos.
O senso comum – e consequentemente os ambientalistas – partilha duas visões a respeito da ciência que, de alguma maneira, são transplantadas para os ditos “filmes ambientais”: há uma ciência má e uma ciência boa.
A ciência má é aquela que gera a tecnologia poluidora e degradadora do meio ambiente – a ciência que constroi usinas nucleares e plataformas de petróleo, a ciência dos temidos transgênicos, que deu suporte à Revolução Verde e à moderna agricultura. Existe um exemplo clássico de filme que traduz essa visão: todos os anos no Festival Internacional de Cinema e Vídeo Ambiental, há sempre um documentário sobre a Monsanto, a multinacional do agronegócio, expondo os males dessa ciência comprometida com o lucro a qualquer preço.
De certa forma, esta ciência é, de modo mais abstrato, a face principal de uma modernidade desumana, fria e instrumental, que nos afastaria de nossa essência humana. Ela é vista também como elemento central de um paradigma equivocado de relação com a natureza, que queremos dominar.
A despeito do retrato um pouco simplório, esse parece de fato ser um aspecto da ciência hoje. Tudo se complica, entretanto, quando saltamos para o outro pólo, pois haveria também uma boa ciência, objetiva e honesta: aquela que defende aquilo em que acreditamos. É a ciência, por exemplo, do Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, o IPCC, que prova, por A mais B, que a temperatura está subindo, as calotas polares, derretendo e o clima do planeta, mudando drasticamente. É a ciência que, com dados e métodos, explica a crise ambiental e aponta soluções para ela.
O problema é que, de um modo ou de outro, sem nos darmos conta, seguimos trabalhando dentro do paradigma moderno: sustentamos a ideia de que existe uma objetividade dura, e que o problema são os interesses políticos e econômicos e suas mãos sujas sobre a ciência, e não a própria ideia de uma objetividade dura e de universalidade, que é justamente aquilo que camufla os interesses escusos e as alianças complicadas entre o dinheiro e o conhecimento.
Não se trata, entretanto, de ser pós-moderno, e cair num relativismo niilista, mas sim, de assumir a máxima do filósofo Bruno Latour, que diz: “É claro que sou relativista, pois o oposto do relativismo é o absolutismo, mas sou um relativista que relativiza o relativismo”.
É preciso, portanto, abandonar essa visão ingênua, de que existiria uma ciência boa e outra má. A crítica necessária passa pela desmistificação da ciência e por reposicioná-la como mais um olhar sobre as coisas e sobre o mundo, e não como o olhar.
Voltando aos filmes, nesses 13 anos de FICA, eles parecem refletir essa mudança, uma lenta caminhada em direção a olhares menos extremados e menos ingênuos em relação à ciência e à questão ambiental. De um quase monotematismo ao redor do binômio catástrofe/denúncia, vimos passando a uma diversidade de olhares, com o benvindo surgimento de muitos filmes de cunho mais poético e mais positivos e propositivos.
Não deve passar despercebido, nesse sentido, o fato de que o próprio documentário também, de seu lado, padece da mesma pretensão de objetividade que o conhecimento científico, discussão que sempre se encontrou no cerne do debate sobre sua linguagem. A raiz do problema é a mesma: a própria ideia de verdade, tal como postulada na modernidade.
Muitos documentários ambientais padecem desse problema e, por isso, resultam ingênuos, quando não francamente levianos. De um lado, por operarem a partir da ideia de uma objetividade dura – seja para acusar a ciência má de falta de objetividade, seja para mostrarem a sua ciência do bem. De outro, por se colocarem numa posição de donos da verdade, de portadores de uma mirada objetiva. Falando desse lugar, não se preocupam em matizar sua própria visão, sinalizando, de diferentes maneiras em sua linguagem, que o filme também é um ponto de vista.
O resultado é sempre um pano de fundo maniqueísta, quando não absolutamente melodramático, das questões ambientais, retratadas como um drama entre vítimas e vilões, o que nem sempre é necessariamente o caso.
É curioso pensar como a crítica, tão impiedosa em relação ao cinema clássico precisamente por suas abordagens melodramáticas e esquemáticas da realidade, pega leve ou mesmo aplaude, muitas vezes, documentários flagrantemente melodramáticos desde que denunciem injustiças sociais ou a degradação ambiental.
Este tipo de visão simplifica e empobrece qualquer debate porque afasta o espectador do centro dos problemas e de sua soluções: por mais que estes filmes nos revoltem, levam-nos, no fundo, à conclusão de que não temos nada a ver com isso.
Filmes assim fazem sempre soar o alarme, para mim, das advertências do crítico Inácio Araújo e do cineasta Eduardo Coutinho. O primeiro afirma: “Não gosto de filmes que me deixam sentindo superior a alguém, acho que há algo profundamente errado nisso”; e o segundo sempre disse que não gosta de fazer filmes “contra” ninguém, pois trata-se, no fundo, de uma posição muito fácil para o realizador.
Felizmente, esse tipo de visão ingênua parece gradualmente ser abandonada pelos filmes ambientais.
Dois filmes recentes, premiados no FICA, retratam bem as duas abordagens distintas a que me refiro: uma, ingênua, e a outra, complexa, tratando com inteligência o espectador.
“Bananas!*” é um documentário caudatário do clássico formato de filmes de tribunal e se assume como tal. Trata de uma luta de Davi contra Golias de camponeses nicaraguenses contra a multinacional Dole Foods. É um filme que termina com a sensação de desconforto e questões não respondidas.
Curiosamente, o vencedor do grande prêmio do 12o FICA, o chinês “Metal Pesado”, de Huaqing Jin, também pode ser considerado um filme de denúncia, mas sua estrutura narrativa o coloca num terreno oposto ao desses exemplos anteriores. O filme retrata o cotidiano de trabalhadores chineses dedicados ao desmantelamento de sucata eletrônica, seguindo vários personagens e suas famílias, que levam uma vida de pobreza extrema. Sem locuções, em letreiros curtos e secos, somos informados do número de trabalhadores envolvidos nesta tarefa e das quantidades de lixo reciclado. Por meio de uma encenação ao mesmo tempo severa e comovente, acompanhamos o cotidiano e ouvimos os dilemas dos personagens.
Um amplo e estarrecedor panorama social e ambiental da China se compõe aos poucos como pano de fundo. No proscênio, cotidiano, melancolia e conflitos geracionais. Numa das famílias, o pai se dedica ao trabalho com sucata em função das dívidas contraídas para custear o casamento de dois filhos. Na outra, uma mãe se angustia diante de suas obrigações tradicionais quando o filho começa um namoro e anuncia que se casará.
Ao invés de afirmações, perguntas e dúvidas. No lugar de apontar, dar a ver um quadro amplo. Tempos mortos, silêncios e banalidades intensificam o incômodo do espectador e os pontos de interrogação, enquanto a China toda pulsa por trás do filme. Ao final, saímos perplexos e gratos por sermos tratados como seres inteligentes. Ao invés das lacunas de um “Bananas!*” puxa-se um fio e nos deparamos com todo um país.
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